quinta-feira, 15 de abril de 2010

Comparações

  • Quanto mais idiota for a conversa, mais alto será o volume do diálogo.
  • Quanto mais sábio o conselho, mais o imbecil irá rejeitá-lo.
  • Quanto maior a fome, maior a espera.
  • Quanto mais orgulhoso o pobre, menor a chance de melhorar de vida.
  • Quanto mais exigente o moço, mais capacho será da esposa.
  • Quanto mais exigente a moça, mais sozinha será.
  • Quanto maior a preguiça, menor a esperança.
  • Quanto mais a gente precisa do dinheiro, mais chato é o trabalho.
  • Quanto maior o discurso, menor o conteúdo que ele tem.
  • Quanto menos coisas a gente faz, menos tem tempo para fazer.
  • Quanto maior a preparação, menor a realização.
  • Quanto maior é a nossa carência, menor é a nossa sedução.
  • Quanto mais a gente ama, mais tem amor para dar.
  • Quanto mais fedido o cachorro, mais afetuoso ele é.
  • Quanto menor a nossa iniciativa, menor a nossa "culpa" por nossas desgraças.
  • Quanto maior a paixão, menor a razão.
  • Quanto maior o amor, maior a compreensão.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Um Dia de Cão

Conheço muitos cães que levam uma vida muito boa, por isso não acho que este título seja justo. Este texto já foi publicado em um livro sobre as Leis de Murphy chamado "Por Que Nada Dá Certo?". Claro que o livro não fez sucesso...

No entanto sigo com a minha missão de dar meu testemunho àquelas pessoas que estão achando que o dia delas foi ruim - Sim, Jack Bauer, isso vale para você também! - e que reclamam que no dia que chover sopa, elas estarão com um garfo na mão.

Este foi o meu Dia de Cão.



Esse dia realmente aconteceu, apesar de, nestes vinte anos, eu jamais ter conseguido convencer ninguém, exceto as testemunhas deste dia, também conhecidas como vítimas inocentes do Dia de Cão. Foi o dia 30 de maio de 1989. Sim, eu sou velha, seu
nerd miserável. Vá jogar no msn games e deixe estes sites para quem realmente gosta de ler...

Não haveria motivo para relembrar este dia horrendo se não fosse para ajudar outras pessoas. Relato aqui nada menos que 41 regras para reconhecer e amenizar seu Dia de Cão.

Aí estão elas:

A intuição sempre avisa que o dia vai ser dose para leão, assim como me avisou naquele dia. O que me ensinou que:


1- Para ser de fato um dia de cão haverá algum compromisso que não se pode faltar de jeito nenhum, tornando assim impossível seguir sua intuição e passar aquele dia embaixo das cobertas.


Sentindo-me indispensável para que o mundo girasse naquele dia, saí com a cara e a coragem e cheia de agasalhos pois o dia amanheceu frio e chuvoso, como é comum num dia de outono. Então percebi que:


2- O tempo que o clima demorará para mudar irá depender de quanto tempo você tem disponível para voltar para casa e trocar de roupa. Claro que será sempre insuficiente apenas por alguns minutos, para que hajam aqueles irritantes instantes de indecisão que parecem durar séculos.


Desnecessário dizer que: se você se preparar para o calor, irá fazer frio e vice-versa.


No meu caso, eu estava usando aqueles quarenta minutos para esperar um ônibus que normalmente passava de dez em dez minutos. Ainda assim não havia problema, pois eu havia antecipado minha saída de casa para ter certeza de achar um assento vago no ônibus já que seria humanamente impossível fazer uma viagem longa daquelas carregando uma pasta A1, um tubo para papéis e uma mochila de pé. Então eu percebi que:


3- Num dia de cão sempre há muita coisa para se carregar. O bastante para não valer a pena tirar o casaco. Caso a criatura resolva tirar o casaco, irá fatalmente esquecê-lo em algum lugar. Neste caso, o tempo esfriará mais uma vez.


4- Não adianta sair mais cedo num dia de cão.


5- Todo ônibus que demora chega lotado. Isto é lógica. Mas caso se decida pegar este ônibus de qualquer maneira, um muito mais vazio passará assim que você tiver passado a roleta. Porém se você decidir esperar este tal ônibus vazio, ele demorará muito mais e virá mais cheio que o anterior.


Minha opção foi pela esperança. Esperei outro ônibus mais vazio. E aprendi que:


6- A lei acima funciona mesmo.




7- Não é humanamente impossível carregar uma mochila cheia, um tubo de papel e uma pasta de tamanho A1(quatro vezes maior do que uma folha A4, essa daí que está na sua impressora), em pé em um ônibus lotado, apesar de ser um sofrimento medonho.


8- É possível ainda suportar insultos e olhares fulminantes de pessoas que preferem maldizer sua existência ao invés de ajudá-la com o material.


9- Ter um enfarte não é tarefa tão fácil assim. E como eu desejei um naquela hora e meia de viagem!


Eu sobrevivi para ver três outros ônibus da mesma linha passarem chispando pelo ônibus que eu estava. Este havia passado cinqüenta minutos depois de minha saída de casa tendo sido antecedido por um ônibus onde só havia lugar nas janelas e nas portas pelo lado de fora. E eu aprendi que:


10- O tal ônibus vazio fica parado na esquina esperando você pegar o cheio.


11- Não há nada para se aprender sobre ônibus em dias de cão. Você não pode sair do jogo e não pode vencer!


Apesar de estar lotado, o primeiro ônibus, que eu e mais as outras vinte pessoas que me faziam companhia no ponto deixamos passar, parecia ter o intento de chegar a algum lugar. Por outro lado, o motorista do nosso veículo resolveu manter a segura média de velocidade de 20 km/hora. Então eu aprendi que:


12- O motorista só está adiantado com o horário dele se você está atrasado com o seu. Ele só anda rápido se você saiu cedo demais para ir a algum lugar que não tem sala de espera.


Ao chegar ao ponto onde deveria pegar o segundo ônibus que deveria me deixar na universidade, todos os passageiros passaram para o mesmo ônibus que eu peguei, estendendo assim os limites do humanamente possível e repetindo a história anterior num ônibus ainda mais lotado. Então aprendi que:


13- Esta história de lotação máxima não existe nem para a Física.


Com as costelas doendo, fiz a opção de caminhar até a faculdade sob um sol escaldante a pegar o terceiro ônibus. Este era um ônibus gratuito, oferecido pela universidade, que vivia lotado e demorava eras para passar. Eu iria morrer se passasse por aquilo uma terceira vez no dia. Mas eu sobrevivi ao vê-lo passar com todos os passageiros sentados e alguns lugares vagos quando eu já estava no meio do caminho. Com isso eu aprendi que:


14- O que você nem tenta, achando que vai dar errado, vai dar certo só para lhe aporrinhar.


Ao chegar ao prédio onde a apresentação do meu trabalho era esperada pela professora no sétimo andar, descubro que todos os elevadores estão enguiçados. As pessoas que tinham fôlego protestavam e isto me deu um certo consolo antes de começar a subir as escadas. Mas chegando ao terceiro lance das escadas eu já estava inconsolável. E pensava que:


15- Elevador nenhum quebra quando seu compromisso é na sobreloja.


Mas eu sobrevivi para chegar à sala. Ouvi alguma coisa sobre o meu atraso justo naquela aula. Resolvi ignorar. Imaginei que:


16- A matéria que você mais precisa na faculdade é sempre dada por uma vaca que lhe odeia.


Acreditem quando eu digo que, antes da apresentação dos trabalhos, era necessário ter um texto cuja última cópia havia sido distribuída segundos antes de eu chegar. Sem problema. Pode-se tirar outra cópia. Havia várias máquinas Xerox no prédio. Somente a do térreo funcionava. Com isso eu aprendi que:


17- Aceite e se aborreça com qualquer chateação que o dia de cão lhe impuser e não tente fazer de conta que “não faz mal”. Não tente fazer de sua paciência um desafio para o dia de cão. Você não é páreo para ele.


Antes de sair ainda escutei a professora dizer com sua habitual antipatia: “Volta rapidinho, tá querida?” E eu percebi que:


18- Toda cretina que te odeia te chama de “querida”.


Voltei tão rapidinho quantos meus pulmões me deixaram. Meus amigos estavam de especial bom humor naquele dia nefasto, sabe-se lá por quê. Um mais engraçadinho sumiu com meu trabalho. Ele não costumava fazer piadas deste tipo, mas resolveu começar naquele dia. Então eu aprendi que:


19- Não importa o quanto uma brincadeira é imbecil. Se for com você, todo mundo vai esquecer que tem cérebro e achar graça. Naquele dia eles seriam capazes de jogar “bobinho” com meu fígado!


Ao abrir a boca pela primeira vez no dia para pedir que ele me devolvesse o trabalho, a professora resolve dar uma daquelas lições de moral para mostrar quem tem a autoridade naquele lugar. Afinal, eu havia chegado atrasada e ainda virava para trás para conversar e atrapalhar a aula?! Assim não dá, não é possível, é muito descaso com a aula... Aí eu vi que:


20- Quem não tem capacidade para liderar nada, apela para o grito e a grosseria. E o que é que eu vou fazer? Apesar dos impostos que meus pais pagaram a vida inteira, eu passei para uma faculdade "gratuita".


Ela foi tão “delicada” e “coerente” que a metade dos alunos levantou-se e saiu de sala em protesto àquele espetáculo desnecessário. Aí, mais esperançosa, eu vi que:


21- Por pior que fosse o dia de cão, você sempre pode contar com seus amigos, mesmo aqueles que te enlouquecem.


Eu, como vítima da grosseria e inspiradora da revolta, tive que me juntar aos revoltosos. E vi que:


22- Sair da sala em sinal de protesto à palhaçada de alguém só deixa este alguém livre para fazer palhaçadas junto aos puxa-sacos dele. E que foi uma coisa estúpida de se fazer justamente quando a apresentação valia nota.


23- Professor de universidade, por mais incompetente e imbecil que seja, tem sempre razão. Ele é o pré-requisito do chefe.


Assim o único motivo que me tirara da cama naquele dia caiu por terra. Não apresentei a bosta do trabalho que me foi devolvido pelo colega engraçadinho no corredor. Mais tarde eu aprenderia que:


24- Um dia de cão sempre é inútil.



E logo eu aprenderia que:


25- Um dia de cão não acaba cedo.


A única garota no grupo que tinha carro convidou-nos a dar uma volta para espairecer. Eu queria muito voltar para casa e me meter na cama fingindo que tudo não tinha passado de um pesadelo, além de estar louca de fome. Mas ela garantiu que me daria uma carona para casa. Então eu percebi:


26- A última coisa que se deve acreditar num dia de cão é que alguém irá lhe fazer um favor.


Depois de várias voltas de carro chegando a lugar nenhum, ela finalmente me deixou na porta da casa dela. Será que não dava para ser, pelo menos, perto de um ponto de ônibus? Ela estava cansada de tanto dirigir e não sabia como eu tinha coragem de lhe pedir algo assim depois de ter andado no precioso carro dela por quase duas horas. Eu confirmei o que já suspeitara antes:


27- Quando alguém promete lhe fazer um favor e em vez disso lhe faz uma sacanagem, você é um ingrato e ainda fica devendo o favor.


A casa daquela cadelinha era um tanto contramão e o ônibus que passava no ponto mais próximo me deixaria a um quarteirão de onde eu morava. Eu senti na pele o que todo mundo já sabia:


28- Um quarteirão fica um bocado longo quando se está agasalhada embaixo de sol quente e carregada de bolsas e pastas.


29- Num dia de cão deve-se evitar desvios no caminho.


Ao abaixar para ver se um pequeno passarinho estava ferido dentro de uma poça de água suja, tomei meu primeiro banho de água de esgoto na vida. O monstrinho estava adorando aquela água imunda e resolveu jogar um pouco em mim. Por que cargas d’água eu fiz isso se nem gosto de passarinhos? Bem, não gosto mais. E vi que:


30- Não se aceita nem se faz favores num dia de cão.


O plano era chegar em casa e esquecer que o mundo existia. Tarde demais eu vi:


31- Nada funciona como planejado num dia de cão.


Haveria uma espécie de reunião lá em casa. Minhas tias e umas amigas de minha mãe apareceriam para um chá. Como única filha presente, eu deveria ficar entre elas e responder todas as perguntas sobre namorados e sobre quando eu pretendia casar.


32- Visita surpresa só acontece em dia de cão.


Três horas depois a reunião acabou. Nem vou relatar os assuntos e o que eu tive que ouvir sobre a minha geração, já que eu era minoria. Basta dizer que foi todo mundo embora ainda soluçando de tanto chorar. Sim, as titias reservam as últimas horas da visita para falar dos que já morreram.


Imediatamente depois que a porta se fechou minha mãe já me perguntava aos berros o porquê de eu ainda não estar pronta para a festa de aniversário de minha sobrinha. Eu estranhei mas entendi:


33- Todo mundo está de mau humor no seu dia de cão.


Eu perguntei o que uma festa de aniversário estava fazendo numa terça-feira. Minha mãe ordenou que eu parasse de implicância com minha sobrinha. Tendo em vista o dia que ela resolveu dar uma festa em que eu tinha obrigação de comparecer, eu tinha toda a razão. Aliás compreendi:


34- O aniversário de alguém com quem você não se dá muito bem é sempre num dia de cão.


Eu teria que me arrumar em tempo recorde. Minha irmã já havia chegado. Ainda iríamos esperar o namorado dela que nos levaria de carro. Evidentemente ele se atrasou e ela, irritada, decidiu que nós duas iríamos no carro dela e que não precisávamos daquele inútil..


Já no meio de um engarrafamento monstro descobrimos que uma havia pensado que o presente de aniversário estava com a outra. Esquecemos o presente em casa. Então eu percebi que:


35- Realmente não dava a mínima se minha sobrinha ficasse sem presente.


O presente estava quietinho em casa e foi levado pelo namorado de minha irmã que chegou cinco minutos depois que desistimos de esperar por ele. Fica aqui a lição:


36- Ser intransigente no seu dia de cão só faz com que o dia seja merecido. Isso se não piorar as coisas! Se nós estivéssemos no carro dele este texto acabaria aqui.


Ele chegou um minuto depois de nós na festa e diz que não viu engarrafamento nenhum. Eu não duvidei.


37- Um dia de cão tem um certo ar de “Além da Imaginação”.


Depois de uma festa repleta de adolescentes que riam cada vez que alguém passava e descaradamente fingiam estar olhando para outro lado. Resolvi tratar do único sobrinho que não me irritava. Ele tinha seis meses na época.


Finalmente o bolo de cobertura cor-de-rosa, sabor desconhecido, foi cortado. O dia se aproximava do fim. O bebê foi o único que gostou da cobertura cor-de-rosa. Ele a distribuiu pelo meu cabelo. Conformada, eu vi que:


38- Ninguém sai limpo de um dia de cão.


Como nada pode ser simples, as despedidas duraram trinta minutos. Quando já estávamos quase voando para a liberdade, alguém ficou choramingando por uma carona. Talvez uma boa ação aliviasse minha barra, mas a ideia foi da minha irmã. Foram outros trinta minutos para que o rapaz a quem levaríamos para casa acabasse de se despedir de todos. Levamos o safado no fiofó do planeta onde ele morava sob a promessa que ele nos mostraria o caminho de volta. Eu pensei mas não quis falar:


39- A boa ação de um dia de cão pode se virar contra você.


Dito e feito! Igual ao cretino do passarinho na poça! Ao saltar do carro, o cretino dá as direções que devemos tomar em seu linguajar ininteligível e a 45 gírias por segundo. Depois virou as costas e foi embora! Eu fiquei sem palavras. Minha irmã só conseguiu esboçar: “Ele disse a primeira à esquerda ou direita?”


O namorado dela havia dado carona para outros adolescentes espinhentos e não pôde acompanhar o carro. Pobre da minha irmã!


40- Um dia de cão pode fazer reféns.


Ficamos tão perdidas que à meia-noite quase fomos parar no Corcovado. Depois de seguir um outro carro insistentemente, temendo entrar em alguma contramão (coisas da minha irmã...), descobrimos que o veículo estava indo para Niterói (Para quem não conhece a cidade do Rio de Janeiro, Niterói é outra cidade, não é o Rio de Janeiro).


Depois de rodar pela cidade inteira (o Rio, não chegamos a subir a ponte Rio-Niterói) chegamos a um lugar que minha irmã reconheceu e de lá conseguimos chegar em casa. Isto só aconteceu à uma hora da manhã. Tecnicamente o dia de cão havia acabado. Então, sem pressa de dormir, resolvi anotar tudo que acontecera.


Um dia ainda daria boas gargalhadas lembrando-me de tudo isso.


PS: Tomara que você tenha dado as gargalhadas, porque isso foi há 20 anos, e ainda não estou rindo.


41- Um dia de cão deixa a gente rancoroso.

domingo, 10 de maio de 2009

O Nome da Minha Mãe

Eu acordei me sentindo bem melhor do que me sentia quando fui dormir.

Eu nem lembrava o que havia me feito sofrer tanto na noite anterior – talvez fosse apenas um sonho. O importante era que eu estava pronta para mais um dia e não havia nada que me pesasse o coração.

É estranho pensar isso. Normalmente nós não lembramos dos momentos de angústia em ocasiões corriqueiras, muito menos ficamos felizes por não estar em angústia. Mas este era exatamente o meu sentimento ao acordar aquela manhã. Parecia que um sonho angustiante havia ficado para trás e eu tinha certeza que jamais teria aquele sonho de novo.

Então não importava. Era apenas mais um dia. O que havia para fazer? Comparecer a uma audiência no fórum sobre as dívidas de minha mãe. Talvez fosse essa a angústia que eu havia deixado para trás. Mas por que eu me angustiaria com as dívidas dela? Nem ela se angustiava com isso.

E com razão. Como sempre, mamãe conseguiu negociar suas dívidas de maneira bastante razoável. Na verdade, ela iria pagar muito menos do que devia. Ela sempre conseguia estas coisas. Mais tarde lá estávamos nós duas olhando vitrines e procurando melhorar meu guarda-roupa para o passeio no iate de Cláudio.

No entanto, tudo parecia um pouco fora de foco desde o momento em que eu despertei. Para começar, havia uma lembrança em mim de alguém que não dava importância para aquelas lojas que me agradavam tanto. Era uma lembrança em primeira pessoa, como se eu já tivesse sido assim – completamente alheia ao que deveria vestir para uma ocasião como essa.

Um passeio no iate de Cláudio. Mamãe tinha certeza que ele estava interessado em casamento. Alguns rapazes passam mesmo por essas crises em que acreditam que o casamento é a resposta para uma vida insegura e inconstante. Não que eu me importasse com o que ele sentia – mas era um excelente partido. Seria a resposta para muitos problemas – meus e de mamãe. Desde a minha separação as contas estavam mais difíceis de pagar.

Aquele era um dia realmente estranho. Por mais que tentasse, não conseguia me lembrar o motivo de minha separação. Eu quase notei que não conseguia lembrar o nome de meu ex-marido, mas mamãe me chamou para dentro da loja.

O passeio no iate era mais tarde naquele mesmo dia. Minhas amigas estavam lá e mamãe também iria. Seria bom ter um ar “virginal” para preparar o terreno para um compromisso sério. Afinal, estamos no século XXI – não é por ser divorciada que eu deixei de ser uma “boa menina”. Mamãe me criou muito bem. Cláudio não iria achar mulher igual.

Mais uma vez as coisas saíram de foco. Eu senti como se algo devesse me incomodar, mas não senti o incômodo em si. Parecia que alguém estava me “invadindo”. Alguém me dizia que havia algo errado. Não “errado” como se julgasse minha naturalidade em investir em um casamento por conveniência, mas “errado” como se essa naturalidade não fosse algo realmente meu. Foi algo estranho de sentir. Estranho, como se a sensação não fosse “minha”, mas estivesse dentro de mim.

Mamãe tratava de dar atenção a Cláudio enquanto eu, depois de um rápido cumprimento, daria atenção a minhas amigas. Quanto mais distante eu ficasse, mais “difícil” seria. Quem sabe, mais interessante...

Luciana e Eddie estavam sentadas em uma espécie de penteadeira. O iate era enorme e estávamos todas impressionadas. Luciana carregava Lucas, seu filho, no colo. O menino já tinha quase três anos, mas adormeceu como um bebezinho no colo da mãe.

Ver minhas amigas me fez muito bem, mas as sensações estranhas continuaram. Elas não me causavam nenhuma aflição, propriamente dita. Apenas curiosidade. Eu, Eddie e Lu comentamos sobre o iate, falamos sobre Cláudio e, muito naturalmente, eu comentei as sensações – primeiro com Luciana.

- Você acredita se eu disser que não tenho lembrança do nascimento do Lucas?

Lu e Eddie me olharam confusas. Eu continuei.

- Minha lembrança mais recente de você é uma soneca que você tirou no sofá da sala da Eddie, toda vestida de vermelho, e Lucas ainda levaria dois meses para nascer. Elas se entreolharam, menos surpresas do que eu imaginava. Isso me deu um pouco de coragem para dividir minha outra sensação. Essa era mesmo perturbadora.

Enquanto elas comentavam o quanto era estranho que essa fosse minha última lembrança de Luciana, eu disse:

- E eu também tenho a vívida lembrança do funeral de minha mãe.

Minhas amigas fizeram silêncio por um instante. Eu insisti na loucura, mas acreditava em cada palavra que eu dizia, apesar de nada fazer sentido.
- A lembrança está forte e vívida. Vocês estavam lá, pelo menos Eddie estava. Minha mãe está lá na no convés do iate neste momento e eu lembro exatamente de como foi ir ao velório dela. Eu me lembro do enterro de minha mãe...

Houve um silêncio compreensível depois destas palavras, mas o incompreensível veio a seguir. Eddie e Lu se entreolharam longamente, até que Eddie disse a coisa mais estranha para mim:
- Nós estávamos comentando isso antes de você chegar. Nós também lembramos do enterro de sua mãe. Foi no cemitério São João Batista.

************************************************

Eu, Luciana e Eddie somos amigas há muito tempo. Conversamos um pouco sobre teorias de inconsciente coletivo, sonhos e outras histórias, mas nada me distraiu. O mais estranho era não sentir nada, nem agonia, nem medo. Só confusão e curiosidade. Eu não sentia nenhuma angústia.

Mas já estava na hora de falar com Cláudio. Ele estava me esperando perto da mesa de pôquer. Várias opções de jogos enfeitavam as paredes e os móveis. Cláudio começou uma conversa casual, daquelas que não levam a lugar nenhum. Depois começou a falar de como ele valorizava o compromisso e como queria construir uma vida mais calma. Foi então que eu fiz a pergunta errada.
- Cláudio, você sabe o nome da minha mãe?
Ele pareceu confuso e, para minha surpresa, um tanto ofendido.
- Claro! Que tipo de pergunta é essa?
Eu queria descobrir mais, porém eu sabia que isso ia me custar caro.
- Você tem que saber o nome da minha mãe. Vocês são amigos. A questão é que... – e isso era a mais pura verdade - ...eu não sei o nome dela.
Eu não esperava por isso. Cláudio colocou as mãos na cintura e baixou os olhos, como se estivesse decepcionado. Depois jogou a mesa de pôquer na parede e quebrou um copo de uísque no chão.


Cláudio estava furioso:
- Eu acabo com sua dor, eu acabo com a vida de merda que você tinha e te dou outra, e é assim que você agradece!? Fora! Fora daqui! Você está por sua conta, agora. Suma daqui!!!
Eu não iria discutir com aquele homem insano. Corri para fora do iate e não vi sinal de minha mãe. Corri até perceber que não sabia para onde ir, não sabia para onde voltar. Minha mãe não estava em lugar nenhum. Pensei em minhas amigas. Olhei de volta para o barco e ele parecia vazio.

Eu tinha minha bolsa comigo. Na agenda eu acharia algum endereço. Foi assim que descobri que a mulher que disse que era minha mãe morava no Flamengo. Rua Marquês de Abrantes.

Eu nem precisei chegar até a porta do prédio. Ela mesma estava se dirigindo para a entrada. Ela já não estava com as roupas bonitas de antes e seu cabelo estava preso com um lenço. Agora eu a via com mais clareza. Seus cabelos eram crespos e grisalhos na raiz. Ela estava sem maquiagem e não se parecia nada comigo.

Eu chamei: “Mãe”. Ela não atendeu. Chamei mais uma vez e ela continuou andando para o portão do prédio. Foi então que eu perguntei:
- Você sabe o nome da minha mãe de verdade? Aquela que não é você.
Ela não respondeu.
- E para onde eu vou agora? – perguntei – Também não tenho onde morar?
Ela fechou o portão e me olhou com indiferença.
- Você mora em Copacabana. – E isso foi tudo o que ela disse antes de ir embora.
Então eu lembrei que conhecia Copacabana muito bem.


Apesar de conhecer Copacabana, eu não conseguia lembrar meu endereço. Eu cheguei a procurar a chave de casa na bolsa, mas a chave que eu tinha era do apartamento daquela mulher – aquele que não era meu.

Tudo que eu conseguia lembrar era o endereço da minha lavanderia. Foi lá que eu consegui chegar. Foi lá que eu vi um rosto conhecido. A mulher morena, de olhos castanhos e voz idêntica à minha foi dizendo, mesmo antes de se aproximar:
- Quem é vivo sempre aparece.

O nome dela era Luciana, assim como o da minha amiga, mãe do Lucas. Luciana carregava um saco de roupas para um carro enorme. O carro estava vazio, assim como a vida dela. Eu a conhecia muito bem.
- Você sabe que nós somos irmãs, não sabe?

Ela suspirou e apenas disse:
- Quem se afastou foi você.
Nenhuma lembrança de afastamento veio à minha mente. Eu culpei a mulher que se dizia minha mãe por isso, mesmo sem saber por quê.
- Luciana, apenas me diga uma coisa e eu te deixo em paz.
Ela agarrou a porta do carro, pronta para batê-la, mas me concedeu esta última pergunta:
- Como era o nome da nossa mãe?


Luciana continuava com a porta aberta e a mão firme no puxador, mas não batia a porta do carro ainda.
- Nós somos irmãs – eu disse – e temos a mesma mãe. Eu só quero que você me diga o nome dela.
Como sempre fazia quando ficava acuada, Luciana demonstrou estar profundamente entediada.
- Eu tenho as fotos da mamãe. Eu fiquei com as fotos.
Eu insisti:
- Mas e o nome dela?
Luciana me respondeu sem virar o rosto para mim.
- Passe lá em casa e eu te mostro as fotos. Só não vá hoje. A casa está uma bagunça.


Eu sabia que estava perto do meu apartamento. Eu só não conseguia me lembrar onde ele era. Mesmo que lembrasse, não havia chave. Ele provavelmente já estava com outra pessoa. Havia toda uma vida que eu deixei para trás e as coisas se arrumaram de acordo com este meu abandono. Haviam mais irmãos esquecidos, mais fotos e parentes. Haviam mais amigos. Mas tudo o que eu tinha agora era o rosto e o nome de uma irmã... e uma idéia muito clara de onde ela morava.

Foi para o apartamento dela que eu fui. Eu sabia que não era o apartamento dela, mas era o apartamento onde ela estaria. Não era o condomínio onde ela, o marido e o filho viviam aproveitando a praia e a piscina. Minha irmã estava morando em um pequeno apartamento na Tijuca. Eu simplesmente sabia que ela morava só e levava trabalho para fazer em casa todos os dias. Eu sabia até com que roupa ela iria atender a porta. Ela tinha os cabelos presos e estava esbaforida. Ainda estava revirando gavetas e pastas empoeiradas. Seu nariz estava vermelho de tanto espirrar. Qualquer quantidade de poeira atacava sua alergia, até mesmo a poeira dos sacos plásticos onde ela havia protegido as fotos de nossa família.

- Olhe só para isso! – Ela também parecia ter adivinhado a minha chegada. Ela não havia mentido. A casa realmente estava uma bagunça se eu fosse comparar aquele ambiente ao tipo de quarto que minha irmã sempre teve. A rainha da arrumação havia espalhado fotos pelo tapete todo. Havia um motivo muito forte para as fotos estarem espalhadas.

- Veja – disse ela, - o rosto dela está apagado em todas as fotos. Existem algumas senhoras aqui nas fotos mais recentes, mas eu não sei qual destas pode ser ela.

Foi muito bom que eu não ter dado ouvidos à minha irmã e ter aparecido no apartamento dela sem demora. Ela parecia confusa. Ela também fora afetada pela falsa certeza que Cláudio construiu para nós. Eu imaginei se ela também teria feito o mesmo pedido. Acho difícil que tenha feito. Não imagino Luciana chorando antes de dormir, desejando esquecer a pessoa de quem sentia tanta falta. Isso é o tipo de coisa que só eu faria.

Mas eu me lembro que a dor foi muito grande naquela noite. Eu realmente questionei se não seria melhor ter tido outra vida. Eu estava só, minhas escolhas me afastaram dos relacionamentos mais sérios. Não tive os filhos que sempre quis ter e nunca casei. A agitada Copacabana não me fazia esquecer que eu morava só e tinha poucos amigos. Os amigos de minha mãe tinham um tipo de religiosidade que não me fazia falta. Entre toda a minha dor no enterro, o único conselho que eu ouvi de um deles foi abandonar as fotos de minha mãe.

- Ficar olhando fotos com amor é idolatria.

E Deus pôs um limite na sabedoria, mas não pôs limite na burrice e na crueldade. Que pena. A foto na minha mão foi ficando mais nítida. O sorriso de minha mãe aos vinte e poucos anos foi aparecendo. Seus cabelos estavam cacheados por um permanente, seu vestido era branco, feito por ela mesma. Era uma bela foto dela antes de conhecer meu pai. Não era uma foto de verdade. Ela nunca tirou uma foto sorrindo tão naturalmente. Estes momentos não foram capturados por câmeras, mas estavam vivos na minha memória.

- O nome dela era Lindaura. Ela é Lindalva na certidão de nascimento, mas constava Lindaura na certidão do primeiro casamento. Ela nunca gostou do nome de batismo e logo na adolescência ela foi apelidada de “Anita”. Era este o nome que ela gostava e por toda sua vida foi conhecida por “Dona Anita”. Quando casou com meu pai passou a se chamar Lindaura Cardoso Balan. Este é o nome em sua certidão de óbito.

As fotos ganharam nitidez. Eram fotos que existiam somente ali, no falso apartamento de minha irmã. Dentre as nossas fotos mesmo, muitas foram perdidas. Eu ainda segurei forte aquela nova foto de minha mãe. Uma que nunca havia visto. Mas já era hora de ir. A tentação não surtiu efeito.


Acordei com os olhos inchados porque havia chorado muito no dia anterior. Era inevitável. Muitas vezes sentia tanta falta de mamãe que chorava até perder o fôlego. Morar sozinha não ajudava muito, mas foi essa a vida que eu escolhi. O choro ocasional fazia parte dela, como da vida de tantas outras pessoas. Eu imaginei se era mesmo um choro de tristeza. Meus olhos ficaram úmidos da primeira vez que vi as pinturas de Bouguereau. Eu sempre chorei com Madame Butterfly. Eu chorei quando vi a carinha achatada e confusa do meu sobrinho quando nasceu. Eu tenho uma certa inveja das pessoas que passam pela vida elegantemente, fazendo as escolhas certas e vivendo como uma propaganda de perfume. Eu realmente trocaria de lugar com elas?

Sem medo de cometer nenhum pecado e sem medo de chorar até não conseguir respirar eu fui até aquela parte do armário onde eu guardo o que eu quase nunca pego. Abri a caixa que só abria quando a memória falhava e tirei de lá um porta-retrato no meio de flores secas. Mamãe sempre detestou aquela foto, mas ela já não opina na minha vida há mais de uma década. Chorando ou não, sofrendo ou não, eu coloquei o porta-retrato com a foto de minha mãe Anita, e Lindaura também, na prateleira. Branca e linda. Uma alma bonita. Coloquei o porta-retrato na prateleira para lembrar mais freqüentemente do tesouro que eu nunca vou perder.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Captura

Eu me lembro daquela noite. Era inverno e a névoa que pairava sobre a praia era tão densa que mal podíamos ver uns aos outros. Talvez aquilo nos tenha atraído para aquele lugar: a sensação de estarmos muito mais distante da confusão da cidade do que realmente estávamos.

A Vieira Souto havia desaparecido atrás de nós, restando apenas o vulto dos prédios e a luz dos holofotes no calçadão da praia, a qual apenas iluminava a névoa tornando-a ainda mais densa. À beira-mar o som das ondas chegava a abafar o barulho dos carros que passavam na avenida.

Afastei-me dos meus amigos para ficar só dentro da cerração. Tudo que eu podia ver eram as ondas brotando da névoa em direção aos meus pés. Por um instante eu tive medo. Recuei para poder ver meus amigos e percebi que eles não estavam longe. Fiquei um pouco mais tranqüila e voltei para a beira do mar.

A sensação de isolamento foi tão entorpecente... Tão sedutora... Perdi aos poucos o contato visual com meus amigos, o som de suas vozes ficou cada vez mais abafado pelas ondas até desaparecer completamente. Então até o som das ondas desapareceu. Uma onda escura afastou a névoa e me engolfou. Nem o mar, nem meus amigos, nem a cidade emitiam um som sequer. Pela escuridão tão forte e o silêncio tão pesado eu achei que tinha morrido naquele instante.

***************************************

Acordei com a sensação de ter dormido por muito tempo. O silêncio era absoluto, mas a escuridão havia passado. Eu estava deitada num chão polido como um espelho. De resto, pouco se podia ver. Pela extensão da minha sombra percebi que havia uma fonte de luz bem atrás de mim. Eu me virei e pude distinguir uma silhueta. Uma figura alta demais, esguia demais para ser humana. Imaginei que espécie de boneco seria aquele. Então ele se mexeu em minha direção.

O grito que brotou de minha garganta cortou o silêncio como uma navalha. Foi como gritar de madrugada. O grito tomou proporções irreais. A criatura recuou cambaleando e se pôs contra a luz. A claridade me cegou temporariamente. Enquanto eu tateava pelo ambiente ele movimentava-se mantendo uma certa distância. Percebi que ele analisava minhas reações nos mínimos detalhes. Com alguma dificuldade eu já conseguia distinguir sua forma.

Aquilo poderia ter mais de dois metros e meio de altura. Sua cabeça era oval e seu rosto era achatado, os ombros eram muito largos e o quadril era estreito. A partir dos joelhos, suas pernas engrossavam até o chão. Ele não tinha pés ou pelo menos a articulação do tornozelo. Talvez por isso seus movimentos fossem tão brutos. O antebraço também era demasiado grosso em relação ao corpo. Nas mãos havia apenas o polegar e uma articulação onde seriam quatro dedos. No rosto a criatura tinha apenas um orifício onde seriam as narinas e dois orifícios onde seriam os olhos. Não me atrevi a olhar dentro deles.

Ele se aproximou novamente e eu gritei. A esta altura ele já havia percebido que a ameaça era ele, não eu. Eu jamais havia sentido tanto medo na minha vida, mas, de repente, sem nenhuma razão para isso, o medo desapareceu. Era como se meu cérebro houvesse recebido uma ordem que não era minha. Meu coração parou de palpitar e o medo sumiu. Isso não era natural.

“Você está me controlando!”. Eu não esperava uma resposta, porém:

“É preciso que nos comuniquemos”. A minha própria voz ecoava dentro da minha cabeça.
“Você está dentro da minha cabeça. O que eu tenho para dizer que você não pode descobrir sozinho?”.

Sem o medo, tudo o que eu sentia era irritação. Seria prudente me afastar dele, mas ele estava me induzindo a enfrentá-lo.

“Eu não possuo os seus pensamentos, apenas transmito os meus de maneira que você possa me compreender.”
“Então você entende o que eu quero?”
“É evidente que você quer respostas. Faça as perguntas.”

Não sei como ele entendeu que eu queria respostas. Eu estava tão confusa que nem sabia por onde começar.

“Quem é você?”
“Sou um pesquisador. O último sobrevivente desta nave.”
“Nave?!”

Olhei à esquerda e vi uma enorme janela. Através do vidro eu vi rochas boiando na escuridão. A única coisa que as iluminava era a luz que vinha da própria nave. Eu não tinha idéia da distância que elas estavam ou do tamanho que tinham. Não havia nada além delas na escuridão.

“Eu estou no espaço!?”

Não havia sinal da Lua, Sol ou qualquer coisa que eu pudesse identificar. Eu só via escuridão. Por outras janelas eu vi manchas brancas, mas nada parecido com o céu que eu conhecia.

“O seu planeta fica naquela direção.”

Atravessei a sala e cheguei até a janela que ficava na parede oposta. De lá vi outras manchas brancas. Entre elas, uma era bastante parecida com ilustrações que havia visto da Via Láctea.

**********************************

“Por quê?”

Foi só o que consegui balbuciar. Minha própria voz continuava explicando de modo implacável tudo o que eu não conseguia mais entender.

“Nós tínhamos provas que havia vida em seu sistema solar. Com a análise de seu corpo percebemos que seu organismo é complexo, bem parecido com o nosso e isso reforça nossa teoria de uma origem comum para nossas raças. No entanto é espantoso o quanto o potencial de seu cérebro não é aproveitado pelo seu corpo”.

De uma maneira estranha eu comecei a me ressentir comigo mesma. Eu me ressentia pelas coisas cruéis que minha própria voz dizia.

“Estudamos muito e descobrimos que a interferência está em sua estrutura.”

Ele me guiou gentilmente para a fonte de luz que eu havia notado assim que acordei. Na verdade era um grande bloco metálico com uma enorme abertura frontal de onde uma luz fortíssima emanava. Minha própria voz era cruel dentro da minha cabeça. Ele, ao contrário, era gentil e me amparava. Ele era o único conforto no meio de todo aquele vazio e daquela escuridão.

“Este sistema pode transformar seu corpo de maneira que ele aproveite todo o seu potencial”.

Pelo menos era claro na caixa metálica. Era a única luz que havia por perto. Era certamente o único lugar em que eu poderia me sentir segura e bem. Lá fora era tão frio e na caixa era quente. Era com certeza... algum tipo de... radiação.

Foi por puro reflexo que, ao sentir o calor daquela luz sobre mim, me virei sobre os calcanhares e tentei me livrar de seus braços, mas ele era forte demais. Pensar foi ficando mais difícil para mim e meu corpo ficou muito pesado. Eu sabia que havia uma maneira fácil de derrubá-lo, mas tudo o que eu sabia era que o esforço era inútil. Ele era muito mais forte do que eu. Isso era estranho, porque ele era tão magro... Sua figura era muito delgada, mas ele era forte. Não havia dúvida de que ele era mais forte que eu. Eu não tinha nenhuma vantagem física sobre ele – isso era certo. Nenhuma. A não ser... algo. Havia uma vantagem para mim, mas não conseguia lembrar qual era.

Eu estava perdendo a sensação no meu braço esquerdo. Eu achei que ele estava sumindo, mas eu vi que minha carne estava se transformando em uma espécie de metal. Meu pé esquerdo também estava desaparecendo, dando lugar àquele estranho espelho líquido. Aquilo subia vagarosamente pelo meu tornozelo. Eu escorreguei e a criatura magra que me segurava cambaleou.

Ele cambaleou como antes.

Ele cambaleou porque não tinha tornozelos.

Eu ainda tinha um.

Como nas brincadeiras de criança, joguei a perna para o lado na tentativa de dar uma rasteira naquela criatura tão forte e tão alta. Eu jamais havia conseguido dar rasteira em alguém antes. Esta foi a primeira vez. Ainda com lembranças da minha infância aparecendo em flashes na minha cabeça, lembrei da bruxa que nunca havia visto, mas imaginei mais de mil vezes – aquela que Maria empurrou para o forno. Ela fez isso para salvar seu irmãozinho. Eu não sabia ao certo por que tinha jogado o homem alto no forno... na luz... na caixa. Não havia porta naquela caixa. Eu não poderia trancar a bruxa lá dentro.

O que a bruxa faria comigo e com João quando saísse do forno?

Por um momento fiquei caída no chão olhando para o brilho da caixa de metal. Aos poucos entendi que me preocupava muito com aquela luz e o que ela poderia fazer comigo. Era um tipo de radiação. O tipo de radiação rouba a sensação de seu braço e de sua perna. Eu conseguia mexê-los, mas não pareciam ser meus. Eu os havia perdido, mas eles ainda estavam grudados em mim. Mexendo, funcionando, agindo... Por quanto tempo continuariam em mim?

A luz tornou-se mais intensa e se espalhou por toda a sala. Tudo parecia um espelho. Toda a sala era agora nada mais que espelhos e vidros. Eu virei o rosto daquela caixa, fonte de luz, mas o brilho ricocheteava ao meu redor. Por trás dos vidros havia apenas rochas e escuridão. Dentro da sala eu não conseguia ver nada. Não sentia nem minha perna, nem meu braço esquerdo. O resto de mim parecia ainda estar lá. O que havia sobrado de mim era a única coisa a ser refletida naquela sala – todo resto era luz, escuridão e espelhos.

Então eu ouvi passos estranhos e brutos vindo em minha direção.

A bruxa estava cambaleando para fora do forno.

***************************************

(continua...)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Bonequinha Linda


Cláudia sempre havia chamado atenção de todos pela sua beleza. Desde pequena foi chamada para fazer comerciais e tirar fotos para publicidade. Existe uma crença de que crianças belíssimas não serão adultos muito atraentes. Isto já estava apavorando os pais de Cláudia que viam uma promissora carreira para a menina caso ela pudesse manter os contatos que seus pais já haviam feito. Os temores se tornaram infundados com o passar do tempo e Cláudia foi uma adolescente belíssima e mais tarde uma mulher estonteante.

Com a vida adulta seus hábitos de criança não mudaram muito. A maior parte de seu tempo ela ficava quietinha esperando que acabassem de arrumá-la. Depois que seu visual estivesse pronto, ela iria ficar quietinha na frente das câmeras e depois passear em silêncio enquanto ouvia exclamações à sua volta. Ela deveria manter aquela expressão de indiferença enquanto outras pessoas falavam sobre seu charme e beleza. Com as outras garotas ela conversaria discretamente por pouco tempo, até que sua mãe ou seu agente pedisse sua atenção em outro lugar.

Cláudia jamais precisou fazer nada além de ficar parada para conseguir a atenção de quem quer que fosse. Tanto na carreira profissional ou para atrair um homem por quem se interessasse, ela só precisaria ficar quieta e manter-se por perto. Quando sua presa finalmente se aproximasse ela o deixaria falar. Ela manteria o ar de indiferença e guardaria na memória o que lhe interessasse. Com seu silêncio, geralmente as pessoas falavam mais e mais e então mais fascinados ficavam os homens e mais vantagens profissionais apareciam. Todos a achavam uma mulher inteligentíssima, só por saber ficar quieta. Em nenhuma situação, profissional ou pessoal, ela daria uma resposta ao final da conversa. Discutiria com seu agente ou sua mãe e depois esperaria um telefonema para dar a resposta final. Telefonemas também vinham com a mesma facilidade que os olhares. O segredo era saber ficar quieta e manter a aparência que os outros quisessem ver.

Porém, um dia, um fotógrafo a deixou bastante confusa. Ele não deixou claro se seu interesse nela era pessoal ou profissional. Ela estava acostumada com interesses pessoais camuflados por interesses profissionais, mas mais cedo ou mais tarde eles acabariam se revelando. O fotógrafo parecia muito entusiasmado com um projeto profissional junto a um empresário conhecido de ambos, mas que não estava na conversa.


- Nós vamos fazer muito dinheiro.

Ele nem sequer perguntou se ela estaria interessada ou não. Ele falava sem parar e ela não teria a chance de retrucar coisa nenhuma mesmo que tivesse a intenção. Ele a olhava com paixão e dizia o quanto ela era perfeita, mas a palavra dinheiro aparecia em cada frase. Nem ele parecia saber qual era seu verdadeiro interesse nela. Quando o agente chegou Cláudia ficou aliviada por um instante, até que viu os dois falarem no mesmo tom histérico e exultante, como se já houvessem conversado a respeito disto antes. Os dois sabiam exatamente do que estavam falando. Algo sobre uma boneca. Esta boneca não fazia nada de especial. Não cantava, não dançava, seus movimentos não eram muitos pois as articulações a deixariam feia, ao que parecia. Esta boneca tinha apenas uma coisa de especial: Ela era feita à imagem de Cláudia.

O tal empresário tinha um escritório no último andar de um prédio com o seu nome. Parecia um homem nervoso, sempre falando alto. Cláudia viu vários desenhos que não pareciam em nada com ela, mas que tinham o objetivo de transformar-se na boneca que levaria o seu nome.
- Ainda não está bom! - zangava-se o empresário - O que as crianças querem é uma boneca com a qual elas possam se identificar. Eu não quero mais uma boneca igual às outras. Eu quero que as crianças se lembrem que existe uma Cláudia de verdade andando por aí!

A negociações continuaram e a árdua busca para um desenho que fosse parecido o bastante com a Cláudia de verdade. Em meio a seus tantos compromissos, Cláudia foi chamada para o escritório do dono daquele prédio. Quando ela chegou lá ele tinha nas mãos o corpo de uma pequenina Cláudia sem roupas, olhos ou cabelos. Apenas o contorno dos traços de seu corpo. Ele a chamou ali para comparar pessoalmente a criatura Cláudia e sua criação.

- Pronto! Era isto que eu queria. Toda menina vai querer uma destas. Esperem só até acrescentarmos os detalhes! Acho que vou fazer outra maior com mais funções que esta. Cláudia apenas observava aquela coisinha frágil sendo agitada pela mão do empresário. Cláudia havia brincado muito pouco com bonecas, talvez por isso não encarasse a pequena coisinha como uma diversão e sim como um estranho recém-nascido. No canto da sala o fotógrafo a observava intrigado. Aquele projeto tinha tudo para fazer milhões. Ele estava imaginando se ela tinha plena noção do que a esperava.

*********************************

O mundo parecia ter desabado sobre aquele escritório no último andar. O empresário segurava as mãos com a cabeça.
- Como é que você faz uma coisa destas comigo, menina!?

Cláudia preferiu deixar que seu agente falasse com ele. Ela não via razão nenhuma para pedir desculpas por um acidente que, afinal de contas, havia acontecido com ela.

- Jackes, não tem o menor problema! O cabelo da boneca ainda não foi decidido, foi?

- Ninguém quer uma boneca de cabelos curtos! Não há nem como fazer isso! O náilon fica horrível neste comprimento! Se optarmos por fazer o cabelo já no molde, ela vai ficar parecendo um homem! - o agente de Cláudia se jogou nas costas da poltrona e ficou calado. O empresário continuava - Bonecas têm cabelos de princesinha! Aqueles que vão até à cintura! Como é que isto aconteceu, garota!?

Cláudia não gostou de ser chamada de garota, nem viu motivos para responder àquele homem grosso. Seu agente já estava contando toda a experiência horrorosa do comercial que ela havia gravado no dia anterior. O produtor havia feito questão de fogos de artifício e um deles estourou para o lado errado, justo onde Cláudia estava. Seus cabelos estavam no seguro e ele iria pagar bem caro por ter arriscado a vida de Cláudia daquela maneira. Poderia ter acontecido algo bem mais grave do que simplesmente ter que cortar seus cabelos bem rentes à nuca. Ela estava aliviada por ter saído desta sem nenhuma queimadura no rosto e aquele homem queria que ela se desculpasse por ter tido sorte?!

- Isto é o pior que poderia ter acontecido! Nossa modelo mudar o visual justo agora que tudo estava perfeito. Quero este cabelo longo de novo, ouviu, menina? Tem muito dinheiro envolvido nisto!


Cláudia estava muito confusa com os valores daquele homem e de todos naquela sala. Até sua mãe ficou inconsolável com a notícia que sua filha teve que cortar seus longos cabelos, para só depois ficar aliviada pela sorte que a filha teve. Depois de tantas grosserias o empresário e o fotógrafo começaram a falar de amenidades e fizeram algumas piadas sem graça. Tanto às amenidades como às piadas Cláudia respondeu com sua tradicional frieza. Aquele sorriso que não chega a ser um sorriso, com o qual Claudia havia conquistado meio mundo e escondido tudo o que sentia realmente por baixo de um verniz perfeito.

***********************************

Dias depois Claudia recebeu em sua casa a visita do fotógrafo. Ele trazia consigo um protótipo da boneca. Os cabelos eram exatamente como os cabelos que Cláudia tinha antes. Os lábios tinham algo de estranho e não pareciam naturais. Já os olhos eram igual aos de qualquer boneca.

- Ainda bem que você escolheu não ir mais lá. - riu-se o fotógrafo - Jackes está uma fera! Não gostou nada deste rosto. A única coisa que ficou do jeito que ele queria já não parece com você: os cabelos. Ele tentou fazer os lábios carnudos como os seus, mas parece que ninguém acha um meio termo! Ou ficam grossos demais ou finos demais. Outro desafio é imitar este teu sorriso de Mona Lisa...

Cláudia não se sentia nem um pouco envaidecida. Estava de mau humor sem poder falar muito. Não que falar muito fosse um hábito seu, mas agora ela não tinha escolha. Um batom contaminado havia lhe estourado os lábios. Qualquer movimento com a boca causaria uma nova ferida que doía horrores!

- Está feio mesmo, hein? Você já está medicada?

Claudia fez que sim. Não estava muito interessada nos avanços daquele homem. Todo aquele projeto dava-lhe uma sensação desagradável de perda e ela ainda não sabia explicar por quê.

***********************************

Ela foi chamada para o escritório de seu agente só para se aborrecer de novo. Havia muito ela já tinha dito que não queria mais ficar à disposição de um projeto que não demandava mais a sua presença do que a de simples fotos. Ela não poderia ficar desmarcando compromissos para atender caprichos daquele homem.

- Eu estou com os riscos deste negócio todo, Matos! Não quero saber da agenda desta mocinha! Agenda que aliás não pode estar tão cheia assim! Olhe só para ela! Está um lixo!

Mas mesmo assim ainda trabalhava. Ela havia até sido chamada para um comercial onde somente seus olhos seriam focalizados. Isto era um alívio pois seus lábios estavam cada vez piores. Se fosse outra modelo não teriam tanta boa vontade com alguém que além de perder cabelos de bom comprimento, ainda estava com os lábios inchados e feridos. Por outro lado lá estava a boneca em cima da mesa. Perfeita em cada detalhe, exceto pelos olhos que ainda estavam “sem vida”. Era esta a reclamação daquele empresário idiota. Ora! O que será que ele estava esperando? Que ela desse seus olhos para a boneca?

- Com estas fotos que Claudia vai tirar hoje o senhor terá uma fonte perfeita para fazer os olhos!

- Eu não quero fotos! Quero que ela fique à disposição de nossos artistas! Não quero passar o mesmo arrocho que passei com os lábios dela. Quero esta boneca o mais realista possível e as fotos não são boas o bastante.

- Eu garanto a você Jackes, depois desta campanha, - vira-se para Cláudia - que caiu do céu para nós, ela vai poder fazer as fotos, poses ou que você quiser na hora que você quiser!

- Acho bom!

Cláudia mantinha os olhos na boneca sobre a mesa. Sua cabeça estava longe. Ela estava procurando entender por que aqueles olhos não serviam. Chegou à conclusão que a boneca parecia cega com aqueles olhos muito abertos, fixos no nada.

***********************************

- Ah! Isto eu não vou aceitar mesmo! - Jackes bufava naquele escritório, andando de um lado para o outro. Matos e Jorge, o fotógrafo, tentavam lhe explicar em vão que foi um acidente o que acontecera com os olhos de Cláudia. Afinal, ela não estava acostumada a passar gel nos cabelos. Como poderia saber que seus olhos sofreriam uma reação alérgica ao gel, quando a franja caiu sobre eles?

- Não quero saber! Isto tudo está me cheirando à desculpa esfarrapada! Primeiro ela corta os cabelos depois do projeto iniciado, depois tem problemas nos lábios justo quando eu tenho que terminar a boca da minha boneca! Agora ela fica com os olhinhos ardendo quando eu preciso deles? Não quero saber! Quero ela aqui agora! Estas fotos estão muito diferentes do olhar que ela tem normalmente. Aquele olhar de superior, de deboche. É isso que as meninas gostam nela, e é isso que elas vão ter.

- Mas já está aí, Jackes! Mais parecido, impossível! - Jorge já estava com pena de Cláudia e de Matos. O que Jackes estava fazendo era simplesmente tirar o sossego dos dois, já que ele não estava tendo sossego nenhum com este projeto.

- Eu quero comparar! É o meu dinheiro aqui! Vocês estão entrando com risco nenhum!

Neste ponto até Matos perdeu a paciência.

- O incrível é que, até agora, só nós estamos perdendo com isso!

- Isto já não é problema meu! Se esta garota não ficasse sassaricando por aí ao invés de fazer o serviço dela, nada disso teria acontecido! Matos não teve nem resposta para isso. Mas como também não tinha remédio, tratou de convencer Cláudia a sair de casa do jeito que ela estava, pelo menos para satisfazer os caprichos de Jackes. Assim que ele visse o estado da moça ele a deixaria em paz. Mais satisfeito, Jackes pediu para a assistente trazer o protótipo do carro que seria vendido separadamente. Era o mesmo modelo do que o que Cláudia dirigia.

***********************************

Os três homens esperaram e esperaram. Enquanto esperavam, passavam de mão em mão aquela boneca tão perfeita. Era como segurar Cláudia na palma da mão e logo, toda criança poderia fazer o mesmo.

Quando começaram a irritar-se com a demora de Cláudia começaram a imaginar as possibilidades. Cláudia havia ficado muito sentida com a maneira com que Matos falou com ela no telefone. Aquilo havia sido apenas reflexo da pressão que Jackes havia causado. Só que não era do feitio dela não comparecer a compromissos. Só tarde demais começaram a ficar preocupados. Só quando a mãe de Cláudia foi notificada do acidente de sua filha pelo celular. Só acreditaram quando chegaram ao local e os bombeiros ainda estavam trabalhando. A imprensa já estava lá. Ninguém tinha muita esperança de tirá-la com vida dos metais retorcidos. Sua mãe ainda teve esperança que não fosse ela naquele carro. Ninguém a reconhecia. Principalmente porque ela já estava diferente antes deste desastre acontecer. Mas os documentos na bolsa e as roupas tiraram a dúvida.

Lá estava ela, vagamente reconhecível, mais quieta do que nunca.



***********************************

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Tempo Perdido


Ela acordou como sempre acordava. Olhava para o relógio ressentida e perguntava a si mesma se aquilo era vida. Começou sua corrida de sempre. Foi se arrumar sem prestar atenção no que via no espelho. Escolheu suas roupas sem prestar atenção no que escolhia e saiu para o trabalho sem prestar muita atenção para onde estava indo.

Chegou ao metrô na hora de sempre, como se já estivesse programada para pegar a mesma condução para o mesmo lugar todos os dias. Tanto o caminho para o ofício quanto o ofício já eram feitos tão mecanicamente que ela nem pensava no que fazia. Apenas fazia a mesma coisa todos os dias e todos os dias eram iguais. Ela esperava ansiosamente o fim do dia. À noite ela só queria voltar para casa e dormir. Talvez até conseguisse sonhar.

Já desejando que o dia chegasse ao final, ela entrou no metrô. Mas, checando o mesmo relógio que sempre checava, esperando ver a mesma hora de sempre, ela percebeu que o tempo passara e ela não havia percebido. Apesar de ter feito tudo como sempre fazia... era tarde demais! Já não havia razão sequer em ir para o trabalho, de tão atrasada que estava. O mais horrível era tentar achar para onde foram todas aquelas horas perdidas! Ela havia feito tudo como sempre. O que teria acontecido? Foi um dia inteiro que ela não sabia como havia passado!

Em meio a seu desespero ela abriu os olhos em seu quarto, deitada em sua cama, com o relógio à sua frente. Ela checou o relógio apavorada com a horas perdidas. E então veio o alívio. Ainda era o meio da madrugada e ela ainda tinha bastante tempo para dormir. Fechou os olhos novamente e procurou o sono.

Mas o sono, ela não achou. Completamente descansada no meio da madrugada ela resolveu que se arrumaria com antecedência. Assim teria mais tempo para se arrumar. Mas ela sempre se arrumava no mesmo tempo, então decidiu que passaria as horas tomando café. Só que sempre levava o mesmo tempo para tomar café e então preferiu sair para o trabalho mais cedo, assim teria mais calma para chegar ao trabalho.

O metrô ainda estava de portas fechadas quando ela chegou até ele. Ela não sabia o que fazer. A caminhada havia sido longa o suficiente para gastar os minutos até a hora do metrô abrir. Mas ela nem percebeu em sua caminhada que o céu não mudava. Ainda era madrugada. Não poderia ficar andando nas ruas desertas assim - o perigo era muito grande. Olhou para todos os apartamentos de janelas escuras, poucas luzes acesas e as ruas totalmente vazias. Ela teve medo. Não podia lembrar-se de quando viu as ruas tão vazias assim. Podia lembrar-se de rostos que passavam rapidamente por ela todos os dias, mas não das ruas sem gente, nuas daquela maneira. Era apavorante. A cidade não parecia estar simplesmente dormindo. Parecia estar morta. Ela não agüentaria ficar mais tempo na rua esperando que o metrô abrisse, nem queria fazer novamente o caminho para casa para ter que voltar mais tarde. O dia não parecia clarear mas ela sabia que tinha acordado há muito tempo atrás. Não havia nenhum relógio por perto e ela havia esquecido o seu, como nunca fazia. Até onde ela percebia, o tempo havia parado.

Mas e se ele andasse novamente no caminho de volta para casa. E se ela se atrasasse outra vez, como havia atrasado antes... antes de acordar...

Quando deixou sua cabeça cair de encontro ao peito ela acordou assustada. Havia adormecido no banco do metrô e sua bolsa estava no chão. Sentiu-se tão aliviada por reconhecer a estação em que estava e os rostos de desconhecidos que nem pensou em como havia chegado até aquele banco. Ela apenas ressentiu ter que ir para o trabalho depois de ter dormido tão mal à noite.

As pessoas que lhe eram familiares foram saltando em estações que ela não reconhecia. De tanto ver as mesmas pessoas todos os dias, apesar de não falar com elas, ela sabia em que estação elas saltavam, e estas não eram as estações de sempre. Havia algo de estranho nelas. Não seguiam o padrão de todas as estações do metrô. Olhou para o quadro dentro do metrô procurando sua estação mas não haviam nomes. Apenas marcas ilegíveis.

A cada parada o metrô se esvaziava. Todas as pessoas desciam parecendo saber para onde iam e nenhuma delas parecia notar mudança nenhuma naquele cenário. O carro já estava se esvaziando. Ela continuava a temer chegar atrasada ao serviço. Preocupada, ela tentou ler ao menos o nome da estação no quadro da plataforma, mas não conseguiu. Conseguiu porém localizar um dos relógios da estação, para saber se estava atrasada. Mas agora os relógios marcavam os anos. Ela só sabia contar minutos e horas, não os anos. Aqueles relógios não a ajudavam. Ela tentou calcular o tempo que havia passado desde... desde... Ela tentou, mas o metrô entrou em movimento e rápido como uma bala mergulhou no túnel escuro com uma só passageira.

E não parou mais.


Um conto de carnaval

Um conto de Carnaval: Eu escrevi este conto há muito tempo... Muita coisa mudou no meu trabalho desde então. É um lugar adorável, com gente adorável e maluca. Mas eu não pensava assim no começo. Talvez eu não compreendesse meus coordenadores e meus colegas tão bem quanto hoje. Talvez eu levasse as coisas à sério demais.


Eu estava danada da vida. Trabalhar na sexta-feira à noite, antes do carnaval sempre foi uma chateação para mim. Meus coordenadores nunca gostaram da idéia de me liberar. Entendam que esta era a única chateação do ano, mas mexia muito comigo. Um certo dia, quando estava me preparando para me aborrecer de novo, os dois já adiantaram que não tinha problema nenhum. Eu estava liberada para ir para Araruama mais cedo.


Eu fiquei muito feliz, mas não entendi o que os fez mudar de atitude.

Então, imaginei a única explicação plausível para isso:


Um Conto de Carnaval

Era uma vez um casal que cuidava de um curso de desenho e coordenava seus professores. Um lugar muito colorido e divertido onde os pequenos artistas iam sujar a cara de tinta sem que a barra sujasse para o lado deles – já que era tudo em nome da arte. Nada muito diferente de um barracão de Escola de Samba, pois na hora da saída os moleques iam desfilando pelo caminho de casa mostrando seus apetrechos coloridos para quem quisesse ver.

Claro que isso tudo dava trabalho para os professores. Mas a verdade é uma só: Quem quer ralar vai ser professor. Quem quer ganhar vai ser doutor! Mesmo sem o doutorado a professora Patrícia sabia que, feriado, mesmo não sendo santo, era sagrado. Então ela pediu para falar com o diretor Marcelo e a diretora Sheila.

- Chefia, me libera de dar aula na sexta-feira de noite. É quase carnaval e é muito difícil que essa galera venha à aula.

O diretor e a diretora pularam nas cadeiras:

- De jeito nenhum. Ninguém aqui é macaco gordo pra ficar quebrando o teu galho. O feriado é só na terça. Tira o cavalinho da chuva. Pra seu governo, vais trabalhar no sábado também.

A professora ficou muito triste. O engarrafamento que ela iria pegar seria indigesto além de perder dois dias de feriado. Ela ainda chorou mais um pouquinho. Prometeu que compensaria as aulas depois.

O diretor Marcelo estava impassível.

- Tá ruim pra todo mundo mas pra nós tá pior, dona Patrícia! Não toque mais nesse assunto ou o bicho pega para o seu lado!

Vencida, a professora entendeu que “tá ruim, mas tá bom”. Pelo menos lhe restavam os dias de Carnaval mesmo. De domingo até a quarta.

Ao chegarem a seu modesto apartamento, conseguido a duras penas e muitos feriados não enforcados, os dois diretores começaram a confabular.

- Vem cá, Marcelo. A terça-feira é gorda, a quarta-feira é de cinzas... A segunda é o quê?

- Sei lá, mulher... Segunda de Carnaval?

- Eu tô achando que a segunda não é Carnaval...

- Então não tem nem conversa! Ninguém vai viajar coisa nenhuma. Vão ralar na segunda e vamos botar os pivetes pra desenhar. Meu nome é Trabalho!

- O meu também! E como estou ralando feito louca, todo mundo tem que ralar também. Mandei a empregada fazer Feijoada.

E, sem pensar no amanhã, os diretores e seu rebento, Vitinho, mergulharam na Feijoada. Ficaram conversando até tarde enquanto o garoto quase encostava seu joguinho no nariz. Como nem a pilha do moleque, nem a do joguinho acabavam, o garoto foi pra cama agarrado com o estrupício barulhento.

Ainda ouvindo a barulheira do brinquedo do moleque, os diretores foram dormir. Mal começaram a roncar e a cacofonia piorou. O quarto foi ficando um palco iluminado e uma inexplicável chuva de confete caiu sobre os dois. Um tamborim e uma cuíca pareciam estar chorando nos seus ouvidos. O casal de diretores sentou na cama e olharam pasmados para um vulto indistinto em pé, em frente à cama.

- Quem é você? – berrou a diretora Sheila, a primeira dos dois a sair da pasmaceira.

- Coloquem os óculos que vocês vão ver. – respondeu o vulto.

Os dois eram míopes. Colocados os binóculos, eles reconheceram um vulto que lembrava Martinho da Vila com uma corda no pescoço.

- Sheila? Tu tá sonhando ou sou eu?

A figura sorria e sambava no quarto dos dois.

- Tá sonhando um sonho de um sonho magnetizado. Mantenham as mentes abertas e os bicos calados. Eu sou o Fantasma de seus Carnavais Passados, a Segunda Feira Enforcada. E se vocês acham que sou eu que estou com a corda no pescoço, dêem uma olhada no passado de vocês...

Uma forma que lembrava o símbolo do MacDonald’s estava dentro do quarto deles e começou a brilhar. Os dois foram transportados para a oficina onde haviam começado a trabalhar. As crianças berravam na sala penduradas nos cachinhos da diretora Sheila, que tinha tinta até na consciência.

- Mas não vai ter aula por quê? – Um pai cheirando a uísque importado estava de mãos na cintura, botando banca em frente da mesa de Marcelo, que explicava pacientemente.

- Senhor Scrooge, dia 24 é a véspera de Natal. As famílias vão querer passar o dia unidas.

O tal pai de aluno já estava meio gagá. Deixou pra ter filhos bem tarde e teve um menino que também não era muito certo das idéias.

- A gente não faz nada no dia 24! – berrou o pequeno Scrooge. Quando o moleque chorava, coisa que acontecia o tempo todo, parecia um gato com o rabo preso num moedor de carne. – Por que não vai ter aaaaaaaaaaaaaaulaaaaaaaaaa?

O velho Scrooge meteu a mão nos bolsos fazendo carinho na grana que lá mantinha.

- Eu estou pagando. Se ele quer aula, vai ter aula.

Sheila se descabelou de lá de dentro pra ver o que era aquela gritaria. Foram muitos panos quentes e muito bafafá até o velho calar a boca.

O Fantasma da Segunda Enforcada cheirava a cerveja e parecia rir da história toda.

- Vocês não botaram o galho dentro dessa vez, mas ficaram meio escaldados. Cada vez que o feriado caía na quinta-feira, vocês se esmeravam para os alunos aparecerem na sexta-feira.

Sheila se queimou.

- A gente vive do dinheiro deles! E as contas, como é que ficam? Tem que tratar o aluno à pão-de-ló mesmo!

O diretor Marcelo assinava embaixo.

- Se a gente não trabalhar o dinheiro não entra! Dinheiro evapora, dívida não.

O Fantasma Segunda-feira continuava de bom humor.

- Calma, galera. Não tô criticando vocês, não. Pensa que eu não sei das despesas? Vocês são bons no que fazem. É por isso que vocês têm alunos. Não é pelo que os clientes malucos têm de ruim – e vocês aceitam. Mas é pelo que vocês têm de bom – e os alunos aproveitam. Eu sei como é que é: manda quem pode, obedece quem tem juízo. O negócio é que vocês já podiam estar mandando.

Mais uma vez, a diretora interrompeu.

- Mas a gente manda. Temos autoridade sobre nossos funcionários e somos muito responsáveis.

- É, na tua casa todo mundo é bamba. Só que vocês só podem contratar gente sem vida social. Eu só tô batendo essa idéia pra vocês pra vocês sacarem como é que a coisa tá andando. Eu sou um enforcado feliz, mas vocês se amarraram tanto em trabalho que não querem saber de outra história. Esse enredo começou aí!

O portal, que agora já estava reconhecido como a Apoteose, mostrava Marcelo e Sheila trabalhando feito doidos. A cena foi se desmanchando até os dois se verem na cama de novo. A batucada parou e o jogo do Vitinho já estava devidamente encostado. Os dois olharam um para o outro. Antes que o diretor falasse qualquer coisa, Sheila botou as mãos nas cadeiras.

- Mas quem é aquele enforcado pra ficar dando lição de moral na gente!? Tu viu como aquele homem cheirava à manguaça, Marcelo?

O diretor ainda estava meio tonto.

- Mesmo que eu acreditasse que isso tudo não passa de uma indigestão... O que aquele maluco achou que a gente podia fazer? Não vamos dar bola para aquele cachaceiro, não! Certos, estamos nós!

E com essa decisão, foram dormir. Mal pregaram o olho e a batucada voltou com bumbo de marcação e apito.

- Foram me chamar... Eu estou aqui, o que é que há?

Os dois sentaram na cama outra vez, e desta vez lembraram de colocar os óculos. Uma dona Marrom, gorda como ela só, estava sentada em CINCO cadeiras. Cada uma das cadeiras tinha um dia da semana gravado. Sábado, domingo, segunda-feira, terça-feira e quarta-feira. As cadeiras flutuavam logo acima do pé da cama dos dois, o que representava um perigo. Se a gravidade se lembrasse daquela dona, era capaz da mulher perfurar o chão.

- Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho. – Disse ela com um sorriso. O cabelo era comprido, cheio de trancinhas fininhas presas nas pontas com continhas coloridas.

Desta vez foi Marcelo quem teve a coragem.

- Esse quarto virou a casa da sogra?! A senhora é quem?

Com aquela voz grossa que senhoras corpulentas costumam ter, ela soltou uma gargalhada rouca e abriu os braços ameaçando se jogar no coitado do Marcelo.

- Ô, meu querido, tá me estranhado? A mim, tu reconhece! Até tu me respeita, meu guri. Eu sou a Terça- feira Gorda. Eu sou o Carnaval! O Fantasma dos Carnavais de Hoje.

Sheila deixou o queixo cair.

- Ô, Marcelo – cochichou ela – Com essa eu não tenho coragem de discutir, não.

A dona ouviu e fechou a cara.

- E faz muito bem, viu? Tem gente que diz que sou eu que mando nesse povo e que faço ele ficar cego para as falcatruas do governo. Tem gente que me culpa por eu ocupar mais de um dia por causa da minha saúde. Eu estou cansada de ouvir desrespeitos por causa do vacilo dos outros! Eu sou a dona de Fevereiro, mas eu não mando no resto do ano, não.

A dona suspirou e tomou fôlego pra continuar vociferando.

- O samba é coisa séria. Eu existo pro brasileiro se ligar que ele tem couro duro mas carne a é fraca. Vamos dar uma olhada no que acontece longe do umbigo de vocês, seus coisa-ruim!

A apoteose brilhou de novo e um grupo de amigos aparece em uma piscina. Como todo grupo de amigos fiéis, estão tirando sarro de quem não está presente.

- É por isso que eu não tenho patrão... Vou empurrando com a barriga, mas não aturo cara dura de ninguém.

- Pois a minha chefe até fez cara feia quando eu disse que não ia. É tudo uma questão de se impor, entende? Ou me libera, ou eu pulo fora. Isso é meio de vida, não é meio de morte, não.

O telefone toca. Alguém vai atender e fala rapidinho no telefone. O sujeito volta com um sorriso gaiato e uma gargalhada.

- É a Patrícia. Só vem no domingo! Ela vai trabalhar até no sábado, galera!

Gargalhadas e um corinho de “muito otária” ecoou pela piscina. A imagem se misturou com outra. Desta vez uma sala com uns três alunos rabiscando nos papéis. A professora, muito contrariada, sentava num canto escutando o papo dos alunos.

- Viajar no Carnaval é loucura. Eu vou pra Bariloche só no mês que vem.

- As férias do meu pai foram em dezembro. O meu irmãozinho não conhecia a Disney.

- Eu vou estar ocupado demais nesse Carnaval. A empregada foi demitida e eu e meus irmãos vamos ter que aprender a mexer no microondas. Ô, professora! Não tô conseguindo fazer um círculo!

Patrícia suspira e coloca um copo em cima do papel.

- Tenta agora...

Sheila e Marcelo estão até sensibilizados, mas olham pra dona Gorda com honestidade.

- A gente entende o que a senhora tá falando. – disse o diretor Marcelo com toda diplomacia do mundo – Um dia ela vai poder ir pra Bariloche. Hoje, ela trabalha com a gente.

Sheila já está mais à vontade.

- A gente também nunca foi pra Disney!

A dona puxa o ar pra dentro e o confete que já tinha assentado levanta todo de novo.

- A guria não quer ir pra Disney, seus cabeções! Ela quer ir pra Araruama com essa raça ruim que ela arrumou!

Sheila estava valente.

- Mas não dá! Tem trabalho!

A dona bufou e as serpentinas voaram também.

- Dar aula pra esses almofadinhas?! Se ela fosse médica, policial ou bombeira eu nem ligava de ela trabalhar no meu feriado, mas a garota tem pouco dinheiro justamente porque não trabalha em coisa de necessidade. Aí, na hora da folga, vira questão de vida ou morte?!

- A gente não liberou pro outro professor. Se liberar pra ela, vai parecer injustiça. – Ponderou Marcelo.

- Eu tô falando justamente disso, suas bestas! Se o outro gosta de trabalhar até no domingo, dá a chave do curso pra ele! A satisfação dele é essa. Eu só fiquei gorda assim por que meu povo não aceitou a chibata do patrão. Eu ainda estou engordando e ficando cheia de saúde. Meu povo pede esses dias pra ficar satisfeito – A Gorda falava e levantava a poeira – mas se tiver que trabalhar insatisfeito... A COISA VAI FEDER!!! VOCÊS NÃO VÃO QUERER ME VER RODAR A BAIANA!!!

Um chapéu cheio de bananas apareceu na cabeça dela e as cadeiras foram girando. O quarto foi engolido por um tornado. Marcelo e Sheila ficaram com medo de parar em Oz! Só que acordaram na cama onde estavam antes e o quarto estava no mesmo lugar.

Os dois estavam sentados, com cara de susto e os óculos tortos no nariz.

- Sheila, que dona brava!

Sheila estava parecendo um papel de tão branca.

- Eu não sabia que o Carnaval tinha um temperamento desses...

Então eles perceberam uma névoa se formando no quarto. Marcelo pulou.

- Ô Sheila! Essa empregada tá dormindo no serviço. Olha quanta poeira!

- Ué! Mas pra tirar poeira ela sempre foi dez...

Uma voz sinistra brotou do pé da cama.

- ZERO!! NOTA ZERO!!!

O sujeito, se não era um defunto, devia estar se sentindo muito mal. Os cabelos grisalhos foram despontando e os olhos cinzentos foram subindo num rosto alucinado. Reconhecia-se bem de longe a figura de Carlos Imperial. Ele enunciava cada palavra cuidadosamente com sua voz rouca. Parecia estar fulo da vida, mas sustentava um sorriso rasgado.

- Eu sou a Quarta-feira de Cinzas, o Fantasma dos Carnavais Futuros. Estou aqui para dizer que vocês vão passar pro segundo grupo.

- Mas...

- CALEM a boca porque eu estou com uma ressaca desgraçada...! Por que vocês se sujeitam aos clientes malucos? Porque valorizam demais o dinheiro! O verdadeiro valor está no indivíduo!!! Vocês não são os únicos! A carga tributária e a jornada de trabalho do brasileiro são DESUMANAS! Isso atravessa qualquer samba! Vocês tentam e tentam melhorar as engrenagens esquecendo-se que os que as operam são muito mais do que máquinas! São seres humanos! O que impede esse povo de fazer uma revolução desastrosa é o jogo de cintura dos passistas. Se esse povo não tiver entusiasmo, esse país não anda – porque a passarela desse povo sempre correu contra a maré.

Marcelo e Sheila estavam apavorados demais para confessar que não entenderam nada.

O Fantasma Cinzento continuou:

- Eu vou mostrar onde essa Harmonia entre vocês, os funcionários e os clientes vai acabar.

A Apoteose brilhou de novo e lá estava Vitinho, com barba na cara, falando com um professor sem nem olhar para a cara dele.

- Meu amigo, não quero saber de problema – eu quero é solução.

O telefone toca e Vitinho atende animado.

- Sim! Ah, é você, mãe? Eu achei que era algum novo aluno. Eu sei que é seu aniversário, mas você faz aniversário todo ano! Eu não posso parar a minha vida pra ficar farreando com a família!

De lá de dentro sai Ricardo, o professor certinho, de barba e cabelos grisalhos. Ricardo tinha o posto de Reitor da UFRJ. Desta forma ele havia conseguido uma sociedade com a Escola de Belas Artes e o curso de desenho de Vitinho. Os dois estavam ganhando uma grana preta..

- Ô, Vítor, manda mais seguranças do curso lá pra UFRJ porque dois alunos tentaram fugir pra passar o Ano Novo com a família. Já falei que a casa deles agora é o alojamento.

- Sim, senhor! – respondia Vitinho todo empolgado. Depois virava para o professor à sua frente e, com dedo em riste, ameaçava. – Nada de contar para os alunos de Habilidade Específica que a Escola de Belas Artes virou presídio, hein?

Ricardo volta lá de dentro meio contrariado.

- E, Vítor! Manda mais escultores Neoclassicistas para os barracões da Unidos do Largo do Machado e Caprichosos de Botafogo! As esculturas têm que estar impecáveis. Já nos garantiram que ninguém vai ficar sambando perto delas – os passistas vão valsar delicadamente ao som de Tchaikovsky.

A Apoteose começou a desmanchar. Até Sheila e Marcelo estavam apavorados.

- O nosso Vitinho! Nem ao seu aniversário ele quis vir.

- Justo ele que gosta tanto de bolo...

O Fantasma sacudia a poeira com os braços.

- Vocês me dão nojo. A minha voz já está sumindo, mas deixo com vocês o meu aviso. Como dizia o Lalau das Certinhas: “Feijoada completa vem com ambulância!”

Tudo ficou nublado. A Apoteose foi sumindo e mais uma vez os dois estavam a sós no quarto. Os dois suavam frio. Deram uma breve olhada um para o outro e correram para o banheiro. A natureza já seguia seu caminho. Era cada um por si!

No dia seguinte a professora estava menos contrariada, mas pediu para falar com os chefes.

- Olha, gente... Eu andei pensando sobre a sexta-feira de noite. Eu entendo o ponto de vista de vocês, mas...

Sheila, um pouquinho abatida, interrompeu.

- Você vai compensar essa aula?

A professora não entendeu nada.

- Vou... Claro que vou.

Marcelo fez cara de pai de todos.

- Então está tudo bem. Você avisou antes, dá tempo de avisar os alunos... Um dia sem aulas não mata, não.

A cara da professora se iluminou.

- Jura? Que legal! Gente, esse é o melhor lugar do mundo pra se trabalhar!

Ricardo apareceu no corredor com cara de preocupado.

- Mas sábado vai ter aula, né?

Sheila ajeitou os cachinhos e olhou para o filho que continuava grudado no computador.

- Vai, mas você usa sua chave tá, Ricardo? Nós vamos para Saquarema.

Ricardo suspirou sossegado.

Vitinho olhou a mãe e o pai intrigado.

- Ué! A gente vai perder a apuração das Escolas de Samba pela televisão? E o desfile?

Marcelo puxou o mouse do garoto.

- A gente vê o compacto. Se a gente trancar a vida de casa pro trabalho e do trabalho pra casa, vamos virar um samba de uma nota só!

***********************************************